nº.52
imagem simples
[tira inicial do último rolo de película utilizado]:
palavras simples:
"Praticamente isolado - até dos próprios condiscípulos, que, prudentes e previdentes, tratavam apenas de conseguir notas altas, de arranjar bons casamentos, de preparar o futuro, sem quererem saber de mais nada -, parecia uma alma penada a caminho das aulas ou a vaguear pelas enfermarias. Nas horas de maior desespero, ia pedir à arte um pouco de alívio. E, em vez de mitigar, exacerbava o sofrimento. A consciência perfurante das minhas limitações, e a dificuldade expressiva, que me fazia quase chorar de raiva sobre cada frase, transformavam o acto criador num auto inquisitorial, onde eu fazia simultaneamente de juiz, de carrasco e de réu. Passada a euforia colectiva do tempo da Vanguarda, o sentimento íntimo, que sempre tivera, e que motivou em parte a cisão, de que o artista era um penitente solitário a enfrentar o absoluto, recrudesceu. Aos levianos e petulantes fogos de artifício de então, opunha agora uma severa, surda e obstinada luta contra as sombras da própria inspiração.
- É um novo livro?
- É.
- Pode-se ler?
- Pode.
Mas aos primeiros versos o Alvarenga empalideceu. (...)"
[Miguel Torga, A Criação do Mundo (O Terceiro Dia), p.203-204]
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