2013-04-01

coisas simples 99

coisas_simples_##

nº.99

imagem simples:



Verderena, tarde de Março de 2004.

[baldafix / acg vario - steinheil-cassar (câmara de 120 mm) ; ilford delta pro 400 (película de 120 mm), digitalizado a partir de negativo, sobreposição de fotos]

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parágrafos simples:

"Certo dia, em meados de Fevereiro, fui almoçar a Manhattan com o meu editor. O restaurante ficava algures nas West Twenties, e, terminado o almoço, comecei a subir a Eight Avenue na direcção da Thirty-fourth Street, onde tencionava apanhar o metro para voltar a Brooklyn. A cinco ou seis quarteirões do meu destino, aconteceu-me ver Sachs do outro lado da rua. Não posso dizer que me sinto orgulhoso com o meu comportamento, mas, na altura, pareceu-me que fazia sentido. Estava curioso em saber o que é que ele fazia naquelas suas deambulações pela cidade, estava desesperado por saber alguma coisa sobre o modo como ele ocupava os seus dias, e foi por isso que, em vez de o chamar, deixei-me ficar para trás, convenientemente escondido. Estava uma tarde fria, com um céu cheio de nuvens e uma ameaça de neve no ar. Durante umas quantas horas, segui Sachs rua após rua, espiei o meu amigo ao longo dos desfiladeiros que são as ruas de Nova Iorque. Agora que escrevo sobre isto, parece muito pior do que realmente foi, pelo menos em termos do que eu imaginava que estava a fazer. Eu não tinha a menor intenção de o espiar, não sentia o menor desejo de devassar os seus segredos. Não, o que eu buscava era um sinal minimamente animador, uma réstia de optimismo capaz de mitigar a minha inquietação. Dizia para mim mesmo: ele vai surpreender-me; fará qualquer coisa, ou irá a um sítio qualquer, e isso será um índice [sic] seguro de que está a recuperar. Mas duas horas passaram e nada aconteceu. Sachs errava pelas ruas como uma alma perdida, deambulando ao acaso entre a Times Square e Greenwich Village sempre no mesmo ritmo lento e contemplativo, sem nunca se apressar, aparentemente alheio ao sítio onde estava. Dava esmolas a pedintes. Parava para acender mais um cigarro de dez em dez quarteirões. Espreitou os livros numa livraria durante alguns minutos e, a certa altura, tirou um dos meus livros de uma estante e examinou-o com alguma atenção. Entrou numa loja porno e passou um bocado a ver revistas de mulheres nuas. Parou diante da montra de uma loja de artigos electrónicos. Por fim, comprou um jornal, entrou num café na esquina da Bleecker com a MacDougal, e instalou-se a uma mesa. Foi aí que o deixei, no preciso momento em que a empregada se abeirou dele para lhe perguntar o que queria. Achei tudo aquilo tão desolado, tão deprimente, tão trágico, que nem fui capaz de contar a Iris quando cheguei a casa.
(...)
Eu subestimara-o e a história daqueles meses era, afinal, muito mais complicada do que me permitira acreditar. Vinham depois as fotos de Sachs nas ruas de Nova Iorque. Pelos vistos, entre Janeiro e Fevereiro, Maria seguira-o pelas ruas com a sua máquina. Sachs dissera-lhe que queria saber qual era a sensação de ser espiado e Maria fizera-lhe a vontade, ressuscitando um dos seus antigos trabalhos: só que, desta feita, era ao contrário. Sachs desempenhou o papel que ela representara e ela fez de detective privado. Foi com uma dessas cenas que eu me cruzei em Manhattan quando vi Sachs passeando no outro lado da rua. Maria também lá estava e aquilo que eu tinha interpretado como uma prova conclusiva da infelicidade do meu amigo mais não era afinal do que uma brincadeira, um pouco de teatro, uma adaptação um tanto pateta de Spy versus Spy. Só Deus sabe como é que foi possível eu não ter visto Maria naquele dia. Devia estar tão concentrado em Sachs que fiquei cego para tudo o mais. Mas ela viu-me e, quando finalmente me falou nisso no Outono passado, senti-me como se a minha vergonha me tivesse esmagado. Felizmente, não conseguiu tirar nenhuma fotografia em que aparecêssemos os dois. Se tirasse, tudo o que eu pensava e fizera seria desvendado, mas a verdade é que eu sempre o segui de muito longe e Maria nunca conseguiu apanhar-nos aos dois na mesma fotografia."

[Paul Auster, Leviathan, trad. José Vieira de Lima, ed. Asa, 2003, p.139-143 (edição original: 1992, título: Leviathan)]

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